domingo, 25 de outubro de 2009

RITMO DISSOLUTO

No Itinerário, assim MB escreve:

"O Ritmo Dissoluto apareceu em 1924 conjuntamente com a segunda edição de “A Cinza das Horas” e “Carnaval”, num volume editado pela Revista de Língua Portuguesa. Causou grande e divertida surpresa nos arraias modernistas aparecer eu, autor de um poema já publicado (“Poética”), onde primitivamente havia este verso “Abaixo a Revista de Língua Portuguesa”, aparecer eu da noite para o dia editado por essa mesma revista. Eis como se tornou possível a coisa. Depois que morreu meu pai, fiquei sem nenhuma esperança de ver em livro os versos que fizera depois de Carnaval. Nunca procurei editores para eles, Ora, aconteceu que um dia, encontrando-me na Livraria Freitas Bastos com Goulart de Andrade, interpelou-me o poeta muito amavelmente: “Então, quando temos novo livro ?” Respondi-lhe que nunca, porque editor não me apareceria, nem eu tinha dinheiro para me editar por conta própria. Ao que Goulart acudiu prontamente: “Pois eu vou lhe arranjar editor”. Não fiz fé que o conseguisse. Dias depois em novo encontro de rua, ouvi-lhe com espanto recomendar-me que procurasse o Laudelino Freire, a quem falara sobre mim e com quem ficara acertado que o meu livro seria editado pela Revista. Assim a publicação do volume Poesias fiquei devendo-a a dois homens a quem atacara: ao poeta que eu satirizara nos “Sapos”, e ao editor contra cuja revista havia gritado “Abaixo!” num poema escandalosíssimo para o tempo (e creio que agora, de novo, para ao menos três trimestres da geração de 45). É verdade que o verso irreverente foi suprimido, mas para ser substituído pelo que lá está:”Abaixo os Puristas!”
O Ritmo Dissoluto é dos meus livros aquele sobre o qual os que apreciam a minha poesia mais discordam.
Para Adolfo Casais Monteiro, que tanto me desvaneceu escrevendo um estudo (Manuel Bandeira, Editorial Inquérito Limitada, Lisboa, 1944), o mais longo dedicado a minha obra poética, nesse livro “o parnasianismo quebrou definitivamente o seu instrumento de bronze; mas o que lhe ficou nas mãos não é um instrumento: são os pedaços com o que há de construir”. E mais adiante, acrescenta: “Em o Ritmo Dissoluto muitas são as poesias sem ritmo de espécie alguma; mais do que ritmo dissoluto portanto ... Mas a maioria delas oscila entre a notação sucessiva de impressões desagregadas uma das outras e a repetição de certos temas já cansados, em que a nota da melancolia se entrelaça com a da voluptuosidade, mas ‘sem poder de convicção’. Há nesse livro não sei o que de morno, de abatido e indiferente; indiferença à poesia como à vida, ausência daquela ressonância aguda ou profunda que é o sinal de que a poesia desceu sobre o poema”. O agudo crítico português confessou que O Ritmo Dissoluto lhe produziu certo mal estar.
Para Octávio de Faria (Estudo sobre Manuel Bandeira em Homenagem a Manuel Bandeira, Rio, 1936), ao contrário, O Ritmo Dissoluto era, dos quatro livros que eu tinha publicado até aquela data (A Cinza das Horas, Carnaval, O Ritmo Dissoluto e Libertinagem), o que mais lhe satisfazia. “É o momento”, explicou, “em que o poeta, vencendo as últimas barreiras da sujeição às regras que o tolhem demais, atinge a sua forma mais agradável.” Diz ainda que lido o livro Libertinagem logo em seguida ao Ritmo Dissoluto, decepciona um pouco; que depois de poesias como”Quando perderes o gosto humilde da tristeza”, “Sob o céu estrelado”, “Carinho Triste” (todas do Ritmo Dissoluto), até “Evocação do Recife”, “Noturno da Rua da Lapa” ou “O impossível carinho” (todas de Libertinagem), não deixam de dar uma impressão de tenuidade, de diminuição de forças, de menor capacidade criadora.
A mim me parece bastante evidente que “O Ritmo Dissoluto” é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para que ? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem. No Ritmo Dissoluto prossegui em certas experiências de Carnaval, como rimas toantes, mistura de versos brancos e versos rimados, versos livres que ainda persiste certo ritmo de medidas e rimados, coisa que depois tomei horror. Devo dizer que figuram nele poemas que são contemporâneos dos de Carnaval ou mesmo anteriores a eles (“Na solidão das noites úmidas”, “Felicidade”, “Mar bravo”, que é de 1913, “A vigília de Hero”, também de 1913 ou 1914, pois escrevi-o em Clavadel, “Quando perderes o gosto humilde da tristeza”). Os demais é que foram compostos a partir de 1921, na Rua do Curvelo ou na Mosela (Petrópolis). (Às influências assinaladas anteriormente há que acrescentar essa da atmosfera de Petrópolis. Dos vinte e quatro poemas que perfazem o Ritmo Dissoluto, oito foram escritos na Mosela. Mas a ação de Petrópolis só se exerce quando estou lá, a ação lenitiva, que atuando sobre a minha sensibilidade, logo me comunica aos versos um manso ritmo de aceitação). Aliás, dois pelo menos dos poemas de O Ritmo Dissoluto são dissolutos de ritmo: “Noite Morta” e “Berimbau”. O primeiro é um dos meus prediletos em minha obra, não sei se porque até hoje guardou para mim a atmosfera do lugar e do momento em que o escrevi, ou se porque, embora em versos-livres, o sinto, na forma, bem mais necessariamente inalterável do que os meus poemas de metro cuidadosamente construído. “Berimbau”, que é de certo modo a minha “Amazônia que ao vi”, está cheio de intenções formais e me recorda um dos maiores prazeres que já tive em minha vida de poeta e foi a atenção com que o ouviu Guilherme de Almeida quando eu disse pela primeira vez o poema ( e só nessa vez o disse bem), poucos dias depois de o ter escrito. À proporção que eu ia recitando, via os olhos de Guilherme que nada lhe escapara dos efeitos que eu ali pusera, por mínimo que fosse. “Berimbau” foi musicado por Jaime Ovalle".


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Existem debates que são datados. Por exemplo: as polêmicas do verso livre, rimado ou da métrica. Hoje, lemos poemas da mais variadas formas sem necessidade de tomar posição estética contra ou a favor. Existe um gosto pessoal, mas sem maniqueismos.
Não era o que acontecia na época. Daí a importância de alguns poemas de Ritmo Dissoluto. Acho até que uma parte da obra de MB é a sua luta para se livrar das formas parnasianas e simbolistas.
Porém, da mesma forma que me parece impossível dissociar a Revolução Francesa da quilhotina, também não conseguimos dissociar a conquista da liberdade da forma empreendida por MB de alguns poemas radicais.
Nem por isso somos obrigados a gostar deles, e nem da guilhotina.

Do livro todo, só gosto de um poema, que me parece seja dos mais perfeitos na forma livre. Trata-se de Gesso:

"GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
                                                                  [pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoalhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
                                                [recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
                                                                  [mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu. "


O que é possível dizer desse poema ?
Não falo do tema, que é tocante. Nem da forma da composição, onde a partir de uma história até banal, o poeta encerra com esta afirmação forte e repentina:
"Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu."
Falaria - se pudesse - da unidade que ele tem, e da poesia que escapa das suas frases.
Ainda que seja em versos livres e sem ritmo, nenhuma palavra aí está a mais. Do pouco que conheço de poesia, acho-o um dos grandes poemas modernos da língua portuguesa.

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