segunda-feira, 26 de outubro de 2009

LIBERTINAGEM

Assim MB se referiu ao livro no Itinerário:

"Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 - anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo. Isso todo o mundo pode ver. O que no entanto poucos verão é que muita coisa que ali parece modernismo, não era senão o espírito do grupo alegre de meus companheiros diários daquele tempo: Jaime Ovalle, Dante Milano, Osvaldo Costa, Geraldo Barrozo do Amaral. Senão tivesse convivido com eles, decerto não teria escrito, apesar de todo o modernismo, versos como os de "Mangue", "Na Boca", "Macumba de Pai Zusé", "Noturno da Rua da Lapa" etc.(este último é aproveitação de um caso que se passou com Ovalle em sua casa da rua Conde de Laje).

Alguns dos poemas de Libertinagem, "Mangue", por exemplo, foram publicadeos no "Mês Modernista", seção que "A Noite" manteve em sua primeira página não me lembro em que mês do ano de 1915. A coisa tinha sido arranjada por Oswald de Andrade, que fizera relações com Geraldo Rocha, proprietário do jornal, e o induzira a essa espécie de "demonstração modernista". Mas quem dirigiu a iniciativa foi Mário de Andrade, e a ele coube indicar os colaboradres: Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Milliet, Prudente de Moraes, neto, Martins de Almeida e eu. A princípio não quis aceitar o convite, porque me pareceu que a gente d'A Noite, cuja diretor na ocasião era Viriato Correa, ia apresentar-nos um pouco como o Sarrasani exibia no circo os seus elefantes ensinados. Mário respondeu-me: "Vocês tão fazendo chiquê com A Noite. Aceitem isso logo ! Liberdade de escrever o que quiser. Eu pretendo mandar pedacinhos vivos porém sem importância, é lógico. Importância de meia-coluna. Acho que vocês devem aceitar". Afinal concordei em colaborar e a respeito dos elefantes Mário me escreveu: "Se você me dá os elefantes do Circo Sarrasani para mim, faço uma das meias colunas com isso. É um bom jeito de mostrar que a gente não cai na esparrela e em última análise nada mais somos que elefantes ensinados, nós artistas. Deixe de ser historiente que é isso mesmo!" Não levei muito a sério "O Mês Modernista": o que fiz foi me divertir ganhando cinquenta mil réis por semana, o primeiro dinheiro que me rendeu a literatura. A uma das minhas quatro ou cinco crônicas chamei "Bife à moda da casa", que era o nome do nosso (nosso: meu, do Ovalle, do Dante Milano, do Oswaldo Costa, da Germaninha Bittencourt) prato de resistência no Restaurante Reis. No prato do restaurante entrava de tudo: era uma mixórdia, que entupia. Assim a minha colaboração, onde havia um cocainômano que rezava: "O pó nosso de cada dia nos dai hoje ...", e de pois da "Lenda Brasileira" e da "Notícia tirada de um jornal", este "Dialeto brasileiro", escrito especialmente para irritar certos puristas:"Não há nada mais gostoso do que 'mim' sujeito de verbo no infinitivo: 'Pra mim brincar'". As cariocas que não sabem gramática falam assim. Todos os brasileiros deviam de querer falar como as cariocas que não sabem gramática. - O erro mais feio de brasileiro é a construção dos pronomes "me", "te", "lhe", "nós", "vós", com o pronome "o", "a", "os", "as": "Ele já mo deu". - As palavras mais feias da língua portuguesa são "quiçá", "alhures" e "amiúde".

Em outra semana fiz "Duas traduções para moderno acompanhadas de comentários". "Traduzi" para o moderno o famoso soneto de Bocage que começa pelo verso "Se é doce no recente, ameno estio".
Eram assim os quartetos:

Doçura de, no estio recente,
Ver a manhã toucar-se de flores,
E o rio,
                        mole
                                                queixoso
Deslizar, lambendo areias e verduras;
Douçura de ouvir as aves
Em desafio de amores
                        cantos
                        risadas
Na ramagem do pomar sombrio.

Como se vê, eu estava mas era assinalando maliciosamente certas maneiras de dizer, certas disposições tipográficas que já se tinham tornado clichês modernistas.
A outra "tradução" era do "Adeus de Tereza". Num comentário, de humour muito sofisticado, dava o meu poema "Teresa" como tradução "tão afastada do original", que a espíritos menos avisados pareceria criação".
Na semana seguinte voltei "traduzindo" estes versos do autor da Moreninha:

            Mulher, irmã, escuta-me: não ames.
            Quando a teus pés um homem terno e curvo
            Jurar amor, chorar pranto de sangue: ele te engana!
            As lágrimas são gala da mentira
            E o juramento manto da perfídia.

Bem, dessa vez eu queria mesmo brincar falando cafageste, e a coisa foi apresentada como "tradução caçanje":

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.

Piada ... Piadas como mais tarde as faria Murilo Mendes a propósito do Rio Paraibuna e da Batalha de Itararé. Por essas e outras brincadeiras estamos agora pagando caro, porque o "espírito de piada", o "poema-piada" são tidos hoje por característica precípua do modernismo, como se toda obra de Murilo, de Mário de Andrade, de Carlos Drummonmd de Andrade e outros, eu inclusive, não passasse de um chorrilho de piadas. Houve um poeta na geração de 22 que se exprimiu quase exclusivamente pela piada: Oswald de Andrade. Mas isso nele não era "modernismo": era, e continua sendo, o seu modo peculiar de expressão. O caso do grande poeta colombiano recentemente falecido: Luis Carlos Lopes. Mas quem negará a carga de poesia que há nas piadas de Pau Brasil ? E porque essa condenação da piada, como se a vida só fosse feita de momentos graves ou se só nestes houvesse teor poético ?

Em Libertinagem inclui dois poemas escritos em francês: "Chambre vide" e "Bonheur lyrique". Ao tempo em que os compus e em anos anteriores fiz outros que nunca publiquei; posteriormente mais um intitulado "Chanson des petits esclaves", incluído na Estrela da Manhã. Esses versos me saíram em francês sem que eu saiba explicar porque. Certa vez em que eu estava preparando uma edição das Poesias Completas, quis acabar com isso de versos em francês, que poderia parecer pretensão da minha parte, e esforcei-me por traduzi-los. Pois fracassei completamente, eu que tenho traduzido tantos versos alheios. Outra experiência minha: mandaram-me um dia uma tradução para o francês de poema meu, pedindo-me não só que sobre ela desse a minha opinião, como que emendasse, mudasse à vontade. Pus mão à obra e vi que para ser fiel ao meu sentimento teria que suprimir certas coisas e acrescentar outras. No fim não deu também nada que prestasse. Tudo isso me confirmou a idéia de que poesia é mesmo intraduzível. No entanto, lá estavam em Libertinagem três sonetos de Elizabeth Barrett Browning, aos quais depois acrescentei um quarto. O português dessas traduções contrasta singularmente com o dos poemas originais. É que na ginástica de tradução fui aprendendo que para traduzir poesia não se pode abrir mão do tesouro que são a sintaxe e o vocabulário dos clássicos portugueses. Especialmente quando se trata de tradução do inglês ou alemão. A sintaxe dos clássicos, mais matizada do que a moderna, sobretudo a moderna do Brasil.

Não passarei além de Libertinagem sem tocar ainda em três dos seus poemas:"Profundamente", "Vou-me embora p'ra Pasárgada" e "Oração do saco de Mangaratiba".

No primeiro não falo da Rua da União, mas ela está ali tão presente quanto na "Evocação do Recife":

                        Meu avô
                        Minha avó
                       Totônio Rodrigues
                        Tomásia
                        Rosa.

Na "Evocação" já havia mencionado o nome de Totônio Rodrigues, "que era muito velho e botava o pince-nez na ponta do nariz". Esse Totônio era sobrinho de meu avô e me parecia muitíssimo mais velho do que ele. Não sei se foi isso ou a maneira de usar o pince-nez, ou o jeito de falar que o marcou tão profundamente na minha memória. Tomásia era a velha preta cozinheira da casa da Rua União. Tinha sido escrava do meu avô e fora por ele alforriada. Naquela cozinha, com seu vasto fogão de tijolo, o seu enorme pilão, e que pelas festas de Santo Antônio, São João e São Pedro resplandecia quentemente com as grandes tachas de cobre areadas até o vermelho, Tomásia, pequena, franzina e de poucas falas, mandava sem contraste e me inspirava um sagrado respeito com as suas duas únicas respostas a todas as minhas perguntas: "hum" e "hum-hum", que eu interpretava por "sim" e "não". Rosa era a mulata clara e quase bonita que nos servia de ama-seca. Nela minha mãe descansava, porque a sabia de toda confiança. Rosa fazia-se obedecer sem estardalhaços e sentimentalidades. Quando estávamos à noitinha no mais aceso das rodas de brinquedo, era hora de dormir, vinha ela e dizia peremptória: "Leite e cama!" E íamos como carneirinhos para o leite e a cama. Mas havia, antes do sono as histórias que Rosa sabia contar tão bem...
"Vou-me embora p'ra Pasárgada" foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropédia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge informou-me que Estrabão e Arrimo, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso que vencera a Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse nome de Pasárgada, que significa "campo dos persas" ou "tesouro dos persas", suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias, como o de "L'invitationa au voyage" de Baudelaire. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente este grito estapafúrdio: "Vou-me embora para Pasárgada!" Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo, mas fracassei. Abandonei a idéia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, ocorreu-me o mesmo desabafo de evasão da "vida besta". Desta vez o poema saiu sem esforço como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto deste poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí e "não como forma imperfeita neste mundo de aparências", uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim "a minha" Pasárgada.
"Oração no Saco de Mangaratiba" não é poema, é resíduo de poema. Em 1926 passei duas semanas num sítio distante de Mangaratiba umas duas horas de canoa. A ida para lá, noite fechada ainda, foi a viagem mais bonita que já fiz na minha vida. Vênus luzia sobre nós tão grande, tão intensa, tão bela, que chegava a parecer escandalosa e dava vontade de morrer (daquela hora é que iria sair o título do meu livro seguinte: Estrela da Manhã). A viagem de volta foi também noturna. Saímos da Praia da Figueira às duas da madrugada para apanhar em Mangarataiba o trem das cinco. Ao virarmos a Ponta da Paciência, levantou-se um vento que quase dá conosco na Restinga da Marambaia. Chegamos em cima da hora para pegar o trem. Caí derreado no banco do vagão. E então, numa espécie de subdelírio da extrema fadiga, todo um poema, o mais longo que já se formou na minha cabeça, começou a fluir dentro de mim. O meu esgotamento era tal, que não tive ânimo para tomar o menor apontamento. Pensei poder recompor os versos em casa. Mas cheguei caí no sono ... Quando acordei, só me restavam na memória os seis versos da oração, única estrofe regular do poema, que era no mais em verso-livre. Nunca me consolei desse desastre."


* * * * * * * * * * * * * * * * * * **

Ler um poema se parece um pouco com olhar uma mulher.
Às vezes gostamos do rosto, mas não dos seios; de outras, admiramos as coxas e empacamos no rosto, e só de poucas admiramos tudo. Embora de algumas gostemos além do razoável sem entender porque.
Poemas também são assim. É exceção termos nossa admiração integral por algum. Podemos gostar do início e do meio; de outras, só do início ou do final, e também acontece de gostarmos sem conseguir explicar o motivo.
A admiração que temos por um determinado poema não é uniforme; é normal que num poema comum apareça uma sacada interessante, ou o contrário.

Em dois poemas de Libertinagem eu sinto isso; “Não sei dançar” e “Mulheres”, dos quais gosto muito do início, mas perco o interesse no resto do poema.

Acho a primeira estrofe de “Não sei dançar” perfeita:

“Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...”

Mas depois o poema se torna quase uma crônica sem interesse para mim.

Da mesma forma, o poema “Mulheres”:

“Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! Fraco!”


Depois, o final me parece que fica pobre.

Não sei se essa pobreza se deve à influência do “poema-piada” ou da “obrigação de ser moderno”. Mas eu considero que ele não consegue manter a força.

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Mas “O Cacto” é um dos grandes poemas que eu conheço:

“O CACTO

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
                                          [privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.”

Petrópolis, 1925

Primeiro vamos falar desses dois cidadões, Laocoonte e Ugolino, citados no início.

"Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados."


Laocoonte
O conjunto escultórico de Laocoonte, atribuído a Agesandro, Atenodoro e Polidoro (três escultores da ilha de Rodes), foi criado entre 42 e 20 a.C. Ficava no palácio do Imperador romano Tito, e atualmente está no museu do Vaticano.
Laocoonte é um personagem da Odisséia, de Homero. Era um sacerdote troiano que pressentiu o perigo que o cavalo de Tróia representava para a cidade e protestou contra a idéia de o levarem para dentro das muralhas. Segundo Homero, Poseidon, um deus que favorecia os gregos, enviou duas serpentes para calar a voz da oposição. Assim, Laocoonte e seus dois filhos foram estrangulados pelas serpentes marinhas, e o cavalo foi levado para Tróia, com as conseqüências que se conhece.

Ugolino e os filhos


Já Ugolino e os filhos é um outro conjunto já esculpido por diversos artistas (Rodin inclusive), sendo mais conhecido o de Jean-Baptiste Carpeaux, de 1857, atualmente no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
O Conde Ugolino é um dos personagens da Divina Comédia de Dante. Derrotado na luta pelo controle político da cidade de Pizza, foi julgado como traidor em 1289, e condenado a morrer de fome, tendo sido trancado com os filhos e netos numa torre, cuja chave foi lançada no rio.
Na Divina Comédia, Dante o encontra no Inferno por que ele teria comido os filhos e netos antes de morrer de fome.
Aliás, o Conde existiu de fato, porém, há poucos anos exumaram os restos dele e da família, e não encontraram marcas de dentes nos ossos, pelo que deduziram (sete séculos depois) que seu suposto canibalismo fora maledicência de Dante.

Mas o que importa aqui é a beleza e tragédia que a imagem escolhida por MB passa do Cacto, e, ao vermos as esculturas nas quais se baseou, também a dignidade e o tamanho que lhe dá, ao compará-lo com duas obras plásticas grandiosas, e inserí-lo na Odisséia e na Divina Comédia.
É difícil para mim comentar o poema. Ele faz parte dos que eu mais gosto sem entender porque. Acho que é por falar das coisas que são grandiosas e maiores do que a morte sem ter a consciência disso, pois mesmo morto, o Cacto ainda mostra sua força, como um Deus.
"- Era belo, áspero, intratável.”

É um poema pequeno, mas poderoso, tem apenas onze versos, mas é imensamente grande. Inclusive, o poema todo tem versos muito longos, sendo que o penúltimo verso tem mais de trinta sílabas, o que lhe dá um ritmo intenso, porém "bastante sem ritmo".
Era um dos que MB mais gostava, e é o preferido de muita gente. Numa enquete feita pela "Folha de São Paulo" ele foi escolhido entre os trinta melhores da poesia brasileira.

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"PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegrias e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo profundamente.

                        *

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosas
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente."


Gosto desse poema, primeiramente, porque também adormeci no colo de uma tia durante uma festa de São João. Só não acordei no meio da noite, mas no dia seguinte. E a sensação de perda só foi minorada durante a manhã. Creio que acordar ainda de noite deva ser muito pior.

Acho interessante que ele comece o poema falando de ontem : "Quando ontem adormeci Na noite de São João", como se tivesse sido ontem mesmo. Só depois, na segunda parte, ele conta que isso aconteceu quando ele tinha seis anos.
Mas a sensação de perda daquela noite se mantém, e parece que essa perda foi ontem. Eu tambem sinto isso, ainda que, no meu caso, entre hoje e o "meu ontem" já tenham se passado mais de cinquenta anos.
E no final do poema, MB faz uma ponte entre aquela noite, em que todos já dormiam e ele acordou, e agora; quando todos dormem uma outra noite e ele está vivo.

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"NA BOCA

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer
                                                                  [vontade aos viciados

Dorinha meu amor...

se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como
                                                                  [o outro:
- Na boca! Na boca!"



Me parece um poema sem ritmo, mas nada alí está demais.
A devassidão assumida é o que eu gosto nele. Aceita-se o álcool, o eter e o vício como forma de pureza.
Quando ele lembra da Dorinha e fala: "Na boca", seria o beijo ou o sexo oral ?
É estranho que a dor de "corno" é a dor que não se pode dizer, mas pedir "na boca", é permitido.


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"O ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e
                                                [menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes
                                                [mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação"
.

O que admiro é que para o seu último poema, ele retira das coisas um atributo delas que é sua parte mais expressiva, mas o que delas resta sem essa parte parece até maior do que a coisa que antes havia, por se tornar um enigma. É como se a coisa que restasse existisse a partir da sua inexistência. Será isso a morte ?

O poema é terno por dizer as coisas mais simples, porém "menos intencionais".
Que seja ardente como "um soluço sem lágrimas".
Que tenha a beleza das flores "quase sem perfume".
"A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos". Como se sabe, o diamante é a cristalização do carbono sob alta pressão, à temperatura de 1.650ºC. Assim, ele pede a pureza da chama, e não a do diamante.
E a paixão dos suicidas "que se matam sem explicação."
Afinal, se matar sem motivo conhecido e não deixar sequer um bilhetinho explicando a razão deve gerar uma ausência maior do que toda presença que o suicida tenha tido durante sua vida.

Não sei se esse "último poema", tão forte pelo despojamento, seria possível, mas é a poesia mais pura escrever desejando-o.

domingo, 25 de outubro de 2009

RITMO DISSOLUTO

No Itinerário, assim MB escreve:

"O Ritmo Dissoluto apareceu em 1924 conjuntamente com a segunda edição de “A Cinza das Horas” e “Carnaval”, num volume editado pela Revista de Língua Portuguesa. Causou grande e divertida surpresa nos arraias modernistas aparecer eu, autor de um poema já publicado (“Poética”), onde primitivamente havia este verso “Abaixo a Revista de Língua Portuguesa”, aparecer eu da noite para o dia editado por essa mesma revista. Eis como se tornou possível a coisa. Depois que morreu meu pai, fiquei sem nenhuma esperança de ver em livro os versos que fizera depois de Carnaval. Nunca procurei editores para eles, Ora, aconteceu que um dia, encontrando-me na Livraria Freitas Bastos com Goulart de Andrade, interpelou-me o poeta muito amavelmente: “Então, quando temos novo livro ?” Respondi-lhe que nunca, porque editor não me apareceria, nem eu tinha dinheiro para me editar por conta própria. Ao que Goulart acudiu prontamente: “Pois eu vou lhe arranjar editor”. Não fiz fé que o conseguisse. Dias depois em novo encontro de rua, ouvi-lhe com espanto recomendar-me que procurasse o Laudelino Freire, a quem falara sobre mim e com quem ficara acertado que o meu livro seria editado pela Revista. Assim a publicação do volume Poesias fiquei devendo-a a dois homens a quem atacara: ao poeta que eu satirizara nos “Sapos”, e ao editor contra cuja revista havia gritado “Abaixo!” num poema escandalosíssimo para o tempo (e creio que agora, de novo, para ao menos três trimestres da geração de 45). É verdade que o verso irreverente foi suprimido, mas para ser substituído pelo que lá está:”Abaixo os Puristas!”
O Ritmo Dissoluto é dos meus livros aquele sobre o qual os que apreciam a minha poesia mais discordam.
Para Adolfo Casais Monteiro, que tanto me desvaneceu escrevendo um estudo (Manuel Bandeira, Editorial Inquérito Limitada, Lisboa, 1944), o mais longo dedicado a minha obra poética, nesse livro “o parnasianismo quebrou definitivamente o seu instrumento de bronze; mas o que lhe ficou nas mãos não é um instrumento: são os pedaços com o que há de construir”. E mais adiante, acrescenta: “Em o Ritmo Dissoluto muitas são as poesias sem ritmo de espécie alguma; mais do que ritmo dissoluto portanto ... Mas a maioria delas oscila entre a notação sucessiva de impressões desagregadas uma das outras e a repetição de certos temas já cansados, em que a nota da melancolia se entrelaça com a da voluptuosidade, mas ‘sem poder de convicção’. Há nesse livro não sei o que de morno, de abatido e indiferente; indiferença à poesia como à vida, ausência daquela ressonância aguda ou profunda que é o sinal de que a poesia desceu sobre o poema”. O agudo crítico português confessou que O Ritmo Dissoluto lhe produziu certo mal estar.
Para Octávio de Faria (Estudo sobre Manuel Bandeira em Homenagem a Manuel Bandeira, Rio, 1936), ao contrário, O Ritmo Dissoluto era, dos quatro livros que eu tinha publicado até aquela data (A Cinza das Horas, Carnaval, O Ritmo Dissoluto e Libertinagem), o que mais lhe satisfazia. “É o momento”, explicou, “em que o poeta, vencendo as últimas barreiras da sujeição às regras que o tolhem demais, atinge a sua forma mais agradável.” Diz ainda que lido o livro Libertinagem logo em seguida ao Ritmo Dissoluto, decepciona um pouco; que depois de poesias como”Quando perderes o gosto humilde da tristeza”, “Sob o céu estrelado”, “Carinho Triste” (todas do Ritmo Dissoluto), até “Evocação do Recife”, “Noturno da Rua da Lapa” ou “O impossível carinho” (todas de Libertinagem), não deixam de dar uma impressão de tenuidade, de diminuição de forças, de menor capacidade criadora.
A mim me parece bastante evidente que “O Ritmo Dissoluto” é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para que ? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem. No Ritmo Dissoluto prossegui em certas experiências de Carnaval, como rimas toantes, mistura de versos brancos e versos rimados, versos livres que ainda persiste certo ritmo de medidas e rimados, coisa que depois tomei horror. Devo dizer que figuram nele poemas que são contemporâneos dos de Carnaval ou mesmo anteriores a eles (“Na solidão das noites úmidas”, “Felicidade”, “Mar bravo”, que é de 1913, “A vigília de Hero”, também de 1913 ou 1914, pois escrevi-o em Clavadel, “Quando perderes o gosto humilde da tristeza”). Os demais é que foram compostos a partir de 1921, na Rua do Curvelo ou na Mosela (Petrópolis). (Às influências assinaladas anteriormente há que acrescentar essa da atmosfera de Petrópolis. Dos vinte e quatro poemas que perfazem o Ritmo Dissoluto, oito foram escritos na Mosela. Mas a ação de Petrópolis só se exerce quando estou lá, a ação lenitiva, que atuando sobre a minha sensibilidade, logo me comunica aos versos um manso ritmo de aceitação). Aliás, dois pelo menos dos poemas de O Ritmo Dissoluto são dissolutos de ritmo: “Noite Morta” e “Berimbau”. O primeiro é um dos meus prediletos em minha obra, não sei se porque até hoje guardou para mim a atmosfera do lugar e do momento em que o escrevi, ou se porque, embora em versos-livres, o sinto, na forma, bem mais necessariamente inalterável do que os meus poemas de metro cuidadosamente construído. “Berimbau”, que é de certo modo a minha “Amazônia que ao vi”, está cheio de intenções formais e me recorda um dos maiores prazeres que já tive em minha vida de poeta e foi a atenção com que o ouviu Guilherme de Almeida quando eu disse pela primeira vez o poema ( e só nessa vez o disse bem), poucos dias depois de o ter escrito. À proporção que eu ia recitando, via os olhos de Guilherme que nada lhe escapara dos efeitos que eu ali pusera, por mínimo que fosse. “Berimbau” foi musicado por Jaime Ovalle".


* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Existem debates que são datados. Por exemplo: as polêmicas do verso livre, rimado ou da métrica. Hoje, lemos poemas da mais variadas formas sem necessidade de tomar posição estética contra ou a favor. Existe um gosto pessoal, mas sem maniqueismos.
Não era o que acontecia na época. Daí a importância de alguns poemas de Ritmo Dissoluto. Acho até que uma parte da obra de MB é a sua luta para se livrar das formas parnasianas e simbolistas.
Porém, da mesma forma que me parece impossível dissociar a Revolução Francesa da quilhotina, também não conseguimos dissociar a conquista da liberdade da forma empreendida por MB de alguns poemas radicais.
Nem por isso somos obrigados a gostar deles, e nem da guilhotina.

Do livro todo, só gosto de um poema, que me parece seja dos mais perfeitos na forma livre. Trata-se de Gesso:

"GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
                                                                  [pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoalhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
                                                [recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
                                                                  [mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu. "


O que é possível dizer desse poema ?
Não falo do tema, que é tocante. Nem da forma da composição, onde a partir de uma história até banal, o poeta encerra com esta afirmação forte e repentina:
"Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu."
Falaria - se pudesse - da unidade que ele tem, e da poesia que escapa das suas frases.
Ainda que seja em versos livres e sem ritmo, nenhuma palavra aí está a mais. Do pouco que conheço de poesia, acho-o um dos grandes poemas modernos da língua portuguesa.

domingo, 18 de outubro de 2009

CARNAVAL

Sobre "CARNAVAL", assim MB fala no Itinerário:

"O meu Carnaval começava ruidosamente,como o de Schumann, mas foi-me saindo tão triste e mofino, que em vez de acabar com uma galharda marcha contra filisteus, terminou chochamente "not with a bang but a whimper".

É um livro sem unidade. Sob o pretexto de que no Carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea alguns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos (“A Ceia”, “Menipo”, “A Morte de Pã” e mesmo “Verdes Mares”, que este até o Pedro Dantas, meu fã nº 1, considera imprestável), e isto ao lado das alfinetadas dos “Sapos”.

A propósito desta sátira, devo dizer que a dirigi ,mais contra certos ridículos do pós-parnasianismo. É verdade que nos versos

“A grande arte é como
Lavor de joalheiro”

parodiei o Bilac da “Profissão de Fé”, (“Imito o ourives quando escrevo...”). Duas carapuças havia, endereçada uma ao Hermes Fontes, outra ao Goulart de Andrade. O poeta das Apoteoses, no prefacio ao livro chamara a atenção do público para o fato de não haver nos seus versos rimas de palavras cognatas; Goulart de Andrade publicara uns poemas em que adotara a rima francesa com consoante de apoio (assim chamam os franceses a consoante que precede a vogal tônica da rima), mas nunca tendo ela sido usada em poesia de língua portuguesa, achou o poeta que devia alertar o leitor daquela inovação e pôs sob o título dos poemas a declaração entre aspas: “Obrigado à consoante de apoio”. Goulart não se magoou com a minha brincadeira e sete anos depois foi quem me arranjou editor para o meu volume de Poesias.

Com Carnaval recebi o meu batismo de fogo. Certa revista deu sobre ele uma nota curta, mais ou menos nestes termos: “O Sr. Manuel Bandeira inicia o seu livro com o seguinte verso: “Quero beber ! cantar asneiras...” Pois conseguiu plenamente o que desejava”. Na Revista do Brasil, ao tempo dirigida por Monteiro Lobato, apareceu este comentário: “Carnaval – Manuel Bandeira – Rio,1919. É este um folhetinho de versos como os outros. Bem como os outros não: porque não há em todos belezas como estas, de um subjetivismo complicado que, noutro tempo, se chamava tolice”. Seguiu-se a transcrição de “Debussy” e depois: “Escola muito conhecida, como se vê. Há quem goste e tem papa francês em São Paulo”. Esse papa francês, na idéia do crítico, parece que era Freitas Valle, o Jacques d’Avray de tantos belos poemas em francês e que nada tinha com o peixe.

Houve, de fato, quem gostasse. Muita gente. João Ribeiro e Oiticica dispensaram as folhetinho a mesma boa acolhida dada à Cinza das Horas. O primeiro escreveu no Imparcial de 15 de dezembro:
“A musa do Sr. Manuel Bandeira é sóbria, oracular e quase taciturna, de poucas palavras, mas por vezes sublimes e profundas. Neste novo livro ... há desenvolturas de espírito e angústias de coração que bem definem o temperamento poderosamente versátil do poeta. Todas as delicadezas da arte, sem dano da suavidade da inspiração, o domínio da idéia e das palavras enfim, o ‘savoir-faire’, as qualidades de verdadeiro escritor aqui se apresentam com exclusivo brilho... Tudo é de esmerado lavor; bastaria uma só das composições de Carnaval para dizer como é numeroso o ritmo dos seus versos e como e consumada a arte com que os compõe”.

Que podia eu desejar ainda ? Era aprovação e elogio do mestre encanecido na leitura da poesia de várias literaturas. Pois tive mais: a geração paulista, que iria, ainda neste ano de 1919, iniciar a revolução modernista, tomou-se de amores pelo Carnaval. Segundo informação de Mário de Andrade, foi Guilherme de Almeida quem primeiro assinalou o livro e o revelou aos companheiros. Naturalmente a sátira "Os Sapos” estava a calhar com o número de combate e, com efeito, por ocasião da Semana de Arte Moderna, foi o meu poema bravamente declamado no Teatro Municipal de São Paulo pela voz de Ronald de Carvalho sob os apupos, assovios, a gritaria de “foi não foi” da maioria do público, adversa ao movimento.

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Publicado em 1919, a edição de "Carnaval" foi custeada pelo seu pai. Ainda que apenas dois anos o separem da publicação de "A Cinza das Horas", boa parte dos poemas não repetia seu tom amargo. Afinal, um livro cujo título é "Carnaval" já sinaliza a intenção.
Mas o Carnaval de MB me parece uma alegoria intelectual da "festa da carne", não o Carnaval real que acontecia nas ruas do Rio de Janeiro. Talvez signifique um início do adeus às agruras da tuberculose, e o começo da sua abertura à busca da alegria, do prazer e do sexo.
Aliás, tanto em temática quanto em forma, o livro me parece um ritual de passagem, em que o novo e o velho perambulam misturados. No primeiro verso do livro MB diz que quer beber e cantar asneiras e no último fala que o seu Carnaval é sem nenhuma alegria.
Dos 33 poemas do livro, eu diria que talvez dois terços sejam poemas novos quanto ao estilo e ao tema, sendo que destes alguns tem conteúdo erótico. Quanto ao terço restante - se publicados fossem -, estariam melhor em "A Cinzas das Horas".
Em diversos dos poemas novos, ele explora os mitos da "Commedia dell'arte", com o triângulo amoroso entre Pierrot, Colombina e Arlequim. Sendo Pierrot o símbolo do personagem poético, sensível e sofrido, apaixonado pela Colombina que o rejeita; Arlequim, o malandro que consegue tudo com jogos e trapalhadas, e, por fim, a Colombina, que é apaixonada pelo Arlequim, por quem é usada e traída.
Eu diria até que MB era um Pierrot que almejava ser Arlequim.

Destaco três poemas, embora um deles me toque diretamente.

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O uso dos mitos de Pierrot, Colombina e Arlequim em muitos poemas os torna previsíveis. No título, já se sabe o enredo e o final, e tendo métrica e rima na forma, ficam mais comuns ainda.

Destes, só destacaria um.

"O DESCANTE DE ARLEQUIM

A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade..."


Quanto à forma, nada a destacar. O que eu admiro é a sua descrição da pilantragem do Arlequim. Mas um Arlequim brasileiro. Quando o leio, me lembro dos sambas antigos de Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e Chico Buarque.

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Outro poema que gosto é "Os Sapos, que foi lido e bastante vaiado durante a Semana de Arte Moderna.

"OS SAPOS

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!" - "Foi!"
- ~"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."

Outros, sapo-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio..."


O que admiro é o tom gozador. Os poetas, muito apropriadamente são comparados a sapos coachando na beira do brejo, disputando qual deles coacha melhor.
Ao criticar os parnasianos, MB afirma que "não há mais poesia, mas há artes poéticas..."

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"SONHO DE UMA TERÇA-FEIRA GORDA

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros,
                                           [e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma
                                                                                      [espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas.

E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
- Dentro de nós, ao contrário, era tudo tão claro e luminoso.

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes - Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas - deusa disto, deusa daquilo, já tontas e
                                                                                      [seminuas.
A turba ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhe flores.

Nós caminhavamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros, negros...
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso.
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
- A profunda, a silenciosa alegria... "


Gosto muito do poema, mas não sei porque. Ninguém comenta sobre ele, mas eu acho que a poesia vaza em seus versos elegantes e delicados. É uma poesia que eu sinto sem conseguir explicar o motivo, além de ser muito Manuel Bandeira.

MB diz no Itinerário que não é escrito em versos livres, pois "ainda acusam o sentimento da medida". Eu acho que seu ritmo específico engana quem pensar que seja prosa. "O Cacto" e "Gesso" repetem esse ritmo.

O poeta conta um sonho. Pela atmosfera, me parece que sonha dormindo, ainda que poderia estar acordado, pois o sonho lhe é muito agradável.

Numa terça-feira de carnaval, ele e uma mulher caminham de máscara e roupa dominó negras, paralelamente a um desfile de carnaval. Porém, enquanto a turba multicolorida festeja com algazarra e alegria, numa apoteose sexual e quase promíscua, ele e ela caminham puros e com solenidade, pois sua alegria estava dentro deles, - "A profunda, a silenciosa alegria".
Eles estavam felizes e tinham consciência disso.

Ao descrever a pureza da sua felicidade, MB utiliza uma imagem inspirada no suplício das santas católicas, cujo uso é insólito tanto no meio daquele quase bacanal como quanto metáfora de felicidade:

"Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma
                                                                                      [espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas
                                                                                    [extáticas"
.


É difícil saber o que eu gosto no poema. Ele não me fala ao cérebro, mas ao coração. Talvez seja a atmosfera de consciência do sonho feliz, da superioridade e do alheamento que o sentimento de felicidade nos dá. Nossa felicidade é tanta que ficamos alheios até às felicidades do mundo exterior.
A poesia está em seus versos, mas sem alarde; poeticamente.
Eu gosto.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A CINZA DAS HORAS

Manuel Bandeira publicou "A Cinza das Horas", seu primeiro livro, em 1917. Era uma edição de 200 exemplares custeada pelo autor. Acredito que o livro não tenha sobrevivido por sí, mas pela importância que MB passou a ter na literatura de língua portuguesa.
Mesmo assim, gosto de alguns poemas que provavelmente teriam se perdido, como soe acontecer com a maioria do que é editado.

No "Itinerário de Passargada", que é visto como uma pequena autobiografia literária, assim MB escreve:

"O meu primeiro livro viria a ser impresso no Brasil, nas oficinas do Jornal do Comércio, dirigidas então pelo simpático Rios, homem gordo, bonachão e paciente com os poetas estreantes que queriam subverter as normas tradicionais da arte tipográfica. A tiragem foi de apenas duzentos exemplares e custou trezentos mil-réis... Bons tempos!

A Cinza das Horas não continha tudo o que eu havia escrito até 1917, data da publicação. Fizera eu uma escolha, preferindo os poemas que me pareciam ligados pela mesma tonalidade de sentimento, pelas mesmas intenções de fatura. O sentimento ia resumido, programado por assim dizer, nos versos, já transcritos, de Maeterlinck. A fatura já não era de modelo parnasiano e sim simbolista, mas de um simbolismo não muito afastado do velho lirismo português. Os sonetos a Camões e a Antônio Nobre são claros indícios disto. Nada tenho para dizer desses versos, senão que ainda me parecem hoje, como me pareciam então, não transcender a minha experiência pessoal, como se fossem simples queixumes de um doente desenganado, coisa que pode ser comovente no plano humano, mas não no plano artístico. No entanto, publiquei o livro, ainda que sem intenção de começar carreira literária: desejava apenas dar-me a ilusão de não viver inteiramente ocioso.

Não fiz grande distribuição do folheto, senão entre parentes e amigos. E um dos motivos foi que, tendo mandado um exemplar a Bilac, não recebi nenhuma resposta. Como na ocasião tivesse conhecido em Petrópolis a Flexa Ribeiro e a Leal de Sousa, ofereci-lhes o volume. Foram eles muito amáveis comigo. O primeiro dedicou-me todo um rodapé na Notícia, onde colaborava semanalmente; e o segundo meia página da Careta. Américo Facó escreveu uma nota na Fon-Fon, assinalando as raízes portuguesas do meu lirismo. José Oiticica, que fazia crítica literária, não me lembra agora em que jornal, ocupou-se do livro lisonjeiramente, transcrevendo, entre outras coisas, o soneto “Um Sorriso”. Afonso Lopes de Almeida escreveu na edição vespertina do Jornal do Comércio, com afetuoso carinho de amigo, o primeiro que fiz no mundo literário. No mesmo jornal fui saudado em comprido artigo por Castro Meneses. Mas a crítica mais desvanecedora, por inesperada, foi a de João Ribeiro no Imparcial. Não tratou naquele dia senão do meu livro e deu ao artigo o título “A Poesia Nova”. Começava assim: “Eis aqui um excelente e verdadeiro poeta. Por que verdadeiro e excelente? Eis também uma questão de resposta difícil.” Mais adiante dizia: “A Cinza das Horas, pequenino volume, é neste momento um grande livro. De tal arte nos havíamos estragado o gosto com o abuso das convenções, dos artifícios e das nigromâncias mais esdrúxulas, que esta volta à simplicidade e ao natural é uma consolação reparadora e saudável.” Transcrevendo a “Canção de Maria”, comentava: “... soa aos meus ouvidos como se fossem voltas e redondilhas camonianas. Têm a mesma suavidade e frescor que ainda conservam as do extraordinário lírico português.” Temperava esses elogios, tão cordiais, com uma advertência onde havia uma lição admirável e que muito me valeu: “Na Cinza das Horas há ainda uma ou outra rara poesia que parece um funesto tributo às manias reinantes. É, todavia, exceção rara, sendo quase tudo de uma arte primorosa, daquela melodia ingênita que Carlyle atribuía a todas as coisas do coração. Os elementos de sua arte são simples como as coisas eternas: céu, água e uma voz errante bastam aos seus quadros:

És como um lírio
Nascido ao pôr-do-sol à beira d’água
Numa paisagem triste, onde cantava um sino...

João Ribeiro não transcreveu a quadra completa, que era assim:

“És como um lírio alvo e franzino
Nascido ao pôr-do-sol à beira d’água
Numa paisagem triste, onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...”

Era como se o mestre dissesse: “Nesse poema de oito versos o que importa como poesia são as palavras que transcrevi: o resto é enchimento, é matéria morta, que deve ser alijada.” Meditei na lição e até hoje em toda poesia que escrevo me lembro dela e procuro só pronunciar as palavras essenciais".


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Gostaria de destacar a consideração que MB faz sobre o conceito do artístico:
"Nada tenho para dizer desses versos, senão que ainda me parecem hoje, como me pareciam então, não transcender a minha experiência pessoal, como se fossem simples queixumes de um doente desenganado, coisa que pode ser comovente no plano humano, mas não no plano artístico".

Essa diferença entre o confessional e o artístico ainda hoje é confusa para muitos. E, apesar da sua autoavaliação negativa, acho que em alguns poemas (ou partes deles), MB ultrapassa o tom confessional e já apresenta alguns achados e soluções poéticas bem elaboradas.
Aliás, embora sua importância na literatura brasileira venha de poemas em que ele rompe com a forma dos poemas deste livro, MB nunca o renegou.

Também acho deliciosamente sincera sua confissão de que publicou o livro sem intenção de começar carreira literária, mas apenas para se dar a ilusão de não viver inteiramente ocioso.


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"DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre".


Teresópolis, 1912.

É o segundo poema do livro, e a escolha dessa posição não deve ter sido aleatória. Gosto dele pela unidade da amargura e tristeza confessadas; o poema começa amargo e triste, prossegue do mesmo modo, e termina ainda pior, pois se no início o autor fazia versos como quem chora, no final já os faz como quem morre.
Acho que o tom quase mórbido deriva diretamente do seu estado de saúde, pois a tuberculos era uma doença normalmente fatal àquela época. Sobretudo se consideramos que, sendo datado de 1912, é anterior a sua estadia em Clavadel.
Mas penso que, originalmente, teria a forma de um soneto, pois os dois primeiros quartetos tem uma ligação muito forte, mas, entre eles e o quarteto final parece-me que falta alguma coisa. Há uma certa descontinuidade. Talvez existisse uma outra estrofe que ele não conseguiu "resolver" adequadamente, sendo forçado a suprimí-la na revisão final, pois o último quarteto tem o estilo conclusivo de um terceto final de soneto.
É interessante que é datado de 1912, antes da sua temporada em Clavadel, e cinco anos antes da publicação deste primeiro livro, mas já faz menção a um livro:"...Fecha o meu livro, se por agora..."
Destaque-se, também, o final:" - Eu faço versos como quem morre".
Aliás, a coda será sempre muito utilizada pelo poeta.


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"PAISAGEM NOTURNA

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
— Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua . . .
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua . . .
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
— Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio via romper . . . Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
— A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando . . .
Assim a névoa azul paira sonhando . . .
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.

                                            E o luar úmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .
"

Teresópolis, 1912

É um poema descritivo.
Quanto à temática, é o misticismo inicial o que mais aprecio.
Não é um misticismo oriundo de uma religião ou por ela resolvido, mas em estado bruto. É o medo da noite e seus ruídos diante do "homem só". Inicialmente, não existe a intenção de compreender nada, é a constatação passiva do poder da noite sem hierarquias e explicações racionais ou mitológicas, e sem um Deus para organizar a vida ou aliviar o sentimento do medo da escuridão e do desconhecido.
A única interferência no medo da noite também vem da natureza: A Lua.
Mas, aí, aparece uma lua humanizada, amiga dos poetas, das almas amorosas, que dissipa o temor nas consciências medrosas e frustra a emboscada a espiar na noite escura (não a posterior "Coisa em sí, - Satélite").
Neste momento também lemos a única interferência religiosa, que vem do belo verso com esta imagem de referência católica:
"Como uma hóstia de luz erguida no horizonte".
A partir da lua, o poema abandona suas trevas e assume um tom lírico, com uma quase esperança confirmada no seu encerramento:

                                            "E o luar úmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .


Ou seja, a solidão e as vozes continuam, embora já animadas e transfiguradas devido à lua.

Quanto à técnica do verso, eu aprecio muito esse estilo intermediário entre os versos livre e o rimado (que também utilizo nos meus poemas); é um texto quase em prosa disposto em versos, sem métrica, e apenas com algumas rimas pontuais para dar ritmo e realçar algumas passagens. MB diria, mais tarde sentir horror a esse estilo meio-termo.
A palavra "Amávica", no penultimo verso, eu não achei na internet nem no Aurélio. Mas acredito que seja alguma forma derivada ou criada a partir de amável, ou amante.

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"VERSOS ESCRITOS N'ÁGUA

Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.

Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.
"

O que eu admiro nesse pequeno poema é o artifício de composição; a sacada.
Nele, lemos um poema onde o poeta nos avisa que os versos eram outros, e que ele colocou estes no lugar daqueles, e diz que deixa ao sonho do leitor imaginar como aqueles serão. E prossegue sugerindo-nos que, ao imaginá-los, neles coloquemos um pouco de tristeza ou júbilo, porque, assim, talvez achemos alguma sombra de beleza.
E, por fim, explica-nos que o motivo de tê-los trocado: por eles, sua musa não se interessou:"Quem os ouviu não os amou".
Acho que os três últimos versos do quarteto final são dispensáveis.
Mas a sacada é ótima.

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"INSCRIÇÃO

Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançava, descuidosa, e hoje não dança mais...

Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.

A morte a surpreendeu um dia que sonhava,
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava...

Eram as suas mãos mais lindas sem anéis...
Tinha os olhos azuis.... Era loura e dançava....
Seu destino foi curto e bom...
                                                        - Não a choreis.
"

Gosto deste soneto. E nem sei porque gosto tanto.
É o mito da mulher bonita e desejada, que vive intensamente e morre jovem. Também creio que é uma homenagem dele à coragem das pessoas que correm o risco de viver pouco, trocando a longevidade pela intensidade; coragem que ele aparentemente não teve.
Infelizmente, o soneto não está datado.
Mas me parece bem construído, e a coda é interessante:
"- Não a choreis".
.
"Sua vida desregrada não merece o nosso choro ?" ou "Não choremos por quem foi feliz usufruindo a vida ?"
Na fábula da Formiga e a Cigarra, ela não seria a formiga trabalhadora.

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"PLENITUDE

Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.

A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,

Entra-me como um vinho acre pelas narinas...
Arde-me na garganta... E nas artérias sinto
O bálsamo aromado e quente das resinas
Que vem na exalação de cada terebinto.

O furor de criação dionisíaco estua
No fundo das rechãs, no flanco das montanhas,
E eu observo-o nos sons, na glória da luz crua
E ouço-o ardente bater dentro de minhas entranhas.

Tenho êxtase de santo... Ânsias para a virtude...
Canta em minh'alma absorta um mundo de harmonias.
Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude
- Belo como Davi, forte como Golias...

E neste curto instante em que me exalto
de tudo o que não sou, gozo o que invejo,
E nunca o sonho humano assim subiu tão alto
Nem flamejou mais bela a chama do desejo.

E tudo isso me vem em vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida ...
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida.
"

Clavadel, 1914

O que gosto nesse poema, escrito em Clavadel, é o entusiasmo, um sentimento raro de se encontrar na sua obra normalmente triste, descrente e cética.
É uma ode à força da natureza e à vida.
Como sabemos da sua luta com a tuberculose, fica nítido que a origem do poema é real e autobiográfica; não é um exercício poético. E, sendo real, fica mais difícil ainda administrar artisticamente o impulso criador sem ceder totalmente à realidade, mas deixando que o sentimento poético a envolva.
Quem já esteve doente e se curou sabe que, no momento em que começamos a nos convencer da possibilidade do restabelecimento, cresce um entusiasmo e uma confiança muito forte. Imagino que, sobretudo, para quem já está desenganado. No poema, sinto isso no verso: "E ouço-o ardente bater dentro de minhas entranhas"

O momento em que ele festeja o reencontro com sua energia é muito bonito e interessante pelo achado de juntar Davi com Golias no mesmo verso, assim como as afirmações sobre as audácias de herói, os sonhos que jamais pode ter, sua exaltação de tudo que não é, e o seu gozo de tudo que inveja, indicando que já anteve e confia na cura:

"Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude
- Belo como Davi, forte como Golias...

E neste curto instante em que me exalto
de tudo o que não sou, gozo o que invejo,"


E, como no poema ele considera que sua cura vem da natureza, vem da "energia vital que no ventre profundo da Terra estuante ofega e penetra as raízes", termina homenageando-a:

"E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida ...
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida".


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"NATAL

Penso em Natal. No teu Natal. Para a bondade
A minh'alma se volta. Uma grande saudade
Cresce em todo o meu ser magoado pela ausência.
Tudo é saudade... A voz dos sinos... A cadência
Do rio... E esta saudade é boa como um sonho!
E esta saudade é um sonho... Evoco-te... Componho
O ambiente cuja luz os teus cabelos douram.
Figuro os olhos teus, tristes como eles foram
No momento final de nossa despedida...
O teu busto pendeu como um lírio sem vida,
E tu sonhas, na paz divina do Natal...
Ó minha amiga, aceita a carícia filial
De minh'alma a teus pés humilhada de rastos.
Seca o pranto feliz sobre os meus olhos castos...
Ampara a minha fronte, e que a minha ternura
Se torne insexual, mais do que humana - pura
Como aquela fervente e benfazeja luz
Que Madalena viu nos olhos de Jesus..."


Clavadel, 1913

O que me atrai nesse poema é sua temática e seu final.
Me parece que no natal, MB lembra de um natal específico passado com uma mulher com quem teve uma relação bastante carnal (conforme sugerido nos dois últimos versos), mas que, agora, a memória a traz como saudade e sentimento de amizade.
Uma amizade que pode até ser ainda mais casta por não trazer um tesão sexual mal resolvido, pois o desejo, que havia, consumado foi.
É a saudade da amizade do ex-amor, que, aliás, é bastante raro.

É bonito quando ele diz: "Seca o pranto feliz sobre os meus olhos castos...!"

E mais bonito ainda quando continua:
"...e que a minha ternura
Se torne insexual, mais do que humana - pura"


E o final, além de ser um feliz achado, também dá a pista da carnalidade que havia na relação, pois ao desejar que sua ternura se torne pura, indica que, no passado, pura não era.

Mas a deseja pura "Como aquela fervente e benfazeja luz
Que Madalena viu nos olhos de Jesus..."


Enfiar Jesus e Madalena num verso é uma imagem especialmente bonita, de quem só deseja a amizade casta em uma relação que teria sido bastante carnal, pois na tradição católica Madalena é a ex-prostituta que se converteu ao cristianismo.

Também gosto quando informa que a moça é loura criando esta imagem:
"..................................Componho
O ambiente cuja luz os teus cabelos douram".
Todo mundo sabe que a palavra Antologia vem do grego e significa "coleção de flores".
O problema é que cada um tem "a sua" coleção de flores.
Assim, os artistas dificilmente são festejados pelos mesmos critérios e pelas mesmas peças.
Na música clássica, alguns preferem de Beethoven as Sinfonias; outros desprezam-nas e adoram os Quartetos, e mais outros (eu entre eles) consideram as Sonatas para Piano o melhor da sua obra.
Na literatura também é assim.
Eu não quero chegar ao ponto de dizer que "Gosto é Gosto", mas que é, é, embora se esconda atrás de argumentos pretensamente irrefutáveis. E não se trata do grau de conhecimento no assunto, pois se dez competentes críticos (????) fizerem, cada um, a sua antologia de qualquer escritor, teremos dez antologias diferentes.
Evidentemente que seguidas de uma chuva de polêmicas, réplicas, tréplicas, etceteras... nos cadernos culturais dos jornais, nas revistas literárias e até nos tribunais.
É por isso que este blog é a minha "Antologia de Manuel Bandeira", e acho que deve ser diferente de um outro eventual blog chamado "A sua Antologia de Manuel Bandeira".

Um abraço.